É hora de falar em punição e não em pacificação. Por Milly Lacombe

No UOL

Uma das mais eficazes ferramentas do capitalismo, especialmente em sua versão neoliberal, é a capacidade de inverter todas as pautas. Antes mesmo de Lula sair vencedor da eleição já escutávamos intelectuais liberais falando em anistia e em pacificação.

As mesmas pessoas que passaram quatro anos numa boa vendo Bolsonaro afundar o Brasil em violências de todos os tipos, da lentidão para comprar vacinas até a congratulação a policiais que se comportavam como milicianos passando pelos inúmeros sigilos de 100 anos em qualquer suspeita de malfeito ou corrupção, agora pedem que Lula e sua turma sejam os pacificadores.

Querem que aqueles que passaram quatro anos sendo abusados sejam os pacificadores.

Criticam Gleisi Hoffmann por ela não aceitar ou reconhecer o pedido de perdão de um pastor que há mais de quatro anos prega o diabo em nossas vidas e explicam, sempre vestidos de suas aparentes razoabilidades e imparcialidades, que o Brasil não aguenta mais essa polarização.

Primeiro: não existe polarização. Existe um campo democrático e o extremismo.

Segundo: não cabe ao campo que há tantos anos é criminalizado, excluído, oprimido, abusado, assediado em todas as suas formas de vida aplicar pacificação nenhuma.

Terceiro: não haverá pacificação sem punição.

Não haverá pacificação sem a construção de um espaço de memória, de investigações e confrontos a respeito de um passado nem tão distante como o da ditadura.

Foi por não fazermos isso que trouxemos à presidência um tarado pelo que acontecia nos porões da ditadura.

Um homem que goza com a morte e que foi capaz de passar quatro anos tranquilamente no poder sem ser apontado por esses intelectuais liberais que agora exigem pacificação pelo que ele realmente é: um extremista de direita.

Foi por não fazermos isso que aceitamos calados que boa parte do empresariado apoiasse financeiramente essa tragédia como se ela fosse parte aceitável do jogo político, apenas “um dos campos”.

Agora é a hora de colocar todo esse horror na mesa e fazer uma autópsia do que passamos.

Investigar, processar, punir.

Punir quem torturou e assassinou Genivaldo, punir quem estrangula crianças que gritam “Lula”, punir policiais e políticos prevaricadores, punir quem pede propina em compra de vacina, punir quem mete sigilo de 100 anos em tudo, punir quem idealizou e executou o Bolsolão, punir juiz que atua como justiceiro, punir empresário que praticou assédio eleitoral… a lista é longa e certamente cada um de nós vai ser capaz de se lembrar de mais alguma desumanidade que deveria estar nela.

Só assim poderemos, um dia, chegar à pacificação verdadeira e duradoura. Qualquer outro trajeto nos levará ao ambiente cantado pelo O Rappa: “paz sem voz não é paz, é medo”.

Sem o caminho da investigação e da punição, falar em pacificação é coisa de gente intelectualmente desonesta que não vê a hora de 2026 chegar para eleger Tarcisios ou algum dos filhotes de Bolsonaro.

Não tem pacificação sem punição e quem estiver falando que tem está jogando contra você e contra o Brasil democrático.

Quem estiver falando em pacificação antes de falar em punição está simbolicamente compactuado com o racismo, o fascismo, o nazismo, a LGBTfobia, o machismo e a misoginia.

São as mesmas pessoas que naturalizaram a extrema-direita, que em 2018 disseram que Haddad e Bolsonaro eram dois extremos equivalentes, que vibravam com as arbitrariedades da Lava Jato e que, mais uma vez, se fantasiam de uma inexistente imparcialidade para vender suas ideologias como universais.

Esqueçam esse papo furado cheio de interesses pessoais.

Só temos um caminho a seguir: Hora do campo democrático capturar o passado para que, assim, possa haver algum futuro.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Zelik Trajber.

Ativista posiciona bandeira do Brasil em protesto da ONG Rio de Paz pelas vítimas do coronavírus, no Rio de Janeiro. Foto: ANTONIO LACERDA / EFE

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